MUITO PRAZER EM CONHECÊ-LO, DOUTOR!
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MUITO PRAZER EM CONHECÊ-LO, DOUTOR!*
Texto de Paulo Rebelo
Acabara de me graduar como médico. Jovem casado e com filho pequeno, precisando cuidar da família, aceitei o emprego para trabalhar num distante distrito de um município no interior da Amazônia. Finalmente, chegara a minha emancipação.
Egresso de uma família remediada, nunca tinha visto tanto dinheiro na minha vida, mas jamais imaginei o que o futuro me reservara como batismo na profissão.
O atendimento médico diário de segunda a sexta se resumia a um atendimento ambulatorial e cuidar de pacientes internados, geralmente, com acidentes por animais peçonhentos, malária, pressão alta, diabetes, gastroenterite e pneumonia, num pequeno e simples hospital interiorano.
Todavia, parece que no interior o médico trabalha mais. Tem que fazer de tudo um pouco: da criança ao velho, passando pelo parto normal. E não pode errar. Lá quem sabe mais do que o médico é só DEUS. Os casos mais graves e raros eram transferidos de barco para a capital.
Ainda assim, apesar de muito trabalho, eu tinha tempo para um pouco de tudo para mim.
Tudo parecia ir tranquilo e eu seduzido pela beleza e paz do lugar, sonhava realizado com o meu mister. Era um homem respeitado pela comunidade e buscava corresponder.
O meu primeiro salário foi enviado inteirinho para minha esposa e filho.
Já ia lá pelo sexto mês, estando perfeitamente adaptado ao vilarejo e sua modesta vida, quando passei a cuidar de um agricultor na casa dos sessenta anos, homem simples e afável, prosador, de uma conversa agradável, pululada de causos da floresta que incluía "encontro com índios e onça". Era divertido. Eu não sabia se era verdade exagerada ou mentira deslavada.
Tinha o hábito de fumar porronca e beber sua cachacinha.
Sua pele era curtida do sol e a tez profundamente marcada pelo tempo. Parecia ter uns setenta e cinco anos.
Um dia queixou-se de que quase não podia mais pegar na enxada. As suas queixas eram de insuficiência cardíaca ou seja, fraqueza progressiva do coração. Os exames básicos confirmaram a doença. Foi medicado. Sem entender muito bem a gravidade do problema, disse que "já tava na hora mesmo de parar de trabalhar". Ele era provedor de sua família. Isso não ocorreu por necessidade, tampouco eliminou os seus vícios.
Após algum tempo, já imaginava ocorrer, foi internado "para compensar a doença", melhorado, recebeu alta. E, de novo, trinta dias depois, ao apresentar-se com anasarca, termo médico para descrever edema generalizado e certo desconforto respiratório, agora muito preocupado com sua situação, naquela manhã, fui obrigado a reinterná-lo. Tinha que voltar a trabalhar. Expliquei a gravidade do caso aos dois filhos recém saídos da adolescência, igualmente, agricultores que tinham algum estudo.
À tarde, o caso piorara e oxigênio já não lhe bastava. Subitamente, a falta de ar agravara. Não era edema agudo do pulmão. Fez um maciço tromboembolismo pulmonar. Naquela época, não existia tomografia computadorizada do pulmão para confirmar e nem adiantaria.
As chances para sobrevivência mesmo nos grandes centros eram pequenas; ali, eram zero.
Claro que pensei em tranferi-lo e nas melhores condições possíveis para si. Mas, seria como transportar do nada para lugar nenhum, visto que, tudo indicava, a morte em breve venceria.
Rezei em silêncio pela sua alma que logo estaria ao lado de DEUS.
Se houvesse um padre este teria sido chamado para extrema unção.
Avisei à enfermagem q ficaria ali ao seu lado e da mulher e filhos resignados, para mitigar seu sofrimento.
À medida que piorava, pouco a pouco, entre "gaspings", como um peixe agonizando sem ar fora d'água, sua voz foi sumindo e com os olhos secos e envidraçados que nem de boneca, quase sem vida, fechava e abria as pálpebras.
Enquanto pôde, insistia em contar seus causos, para o doloroso sorriso entre lágrimas e profunda consternação de todos os presentes. Era demais para mim, mas mantive a fleuma.
Agarrou a minha mão e disse-me o velho homem já moribundo:
"médico, por favor, não me deixe morrer". Isso me doeu no fundo de minha alma.
Apertei-lhe a mão que já soltara a minha. "Estou aqui", disse eu. Senti as lágrimas do filho sobre meu ombro.
A morte me dizia, finalmente:
"o prazer é todo meu em te conhecer, doutor".
Paulo Rebelo, o médico poeta.
MUITO PRAZER EM CONHECÊ-LO, DOUTOR!*
Texto de Paulo Rebelo
Acabara de me graduar como médico. Jovem casado e com filho pequeno, precisando cuidar da família, aceitei o emprego para trabalhar num distante distrito de um município no interior da Amazônia. Finalmente, chegara a minha emancipação.
Egresso de uma família remediada, nunca tinha visto tanto dinheiro na minha vida, mas jamais imaginei o que o futuro me reservara como batismo na profissão.
O atendimento médico diário de segunda a sexta se resumia a um atendimento ambulatorial e cuidar de pacientes internados, geralmente, com acidentes por animais peçonhentos, malária, pressão alta, diabetes, gastroenterite e pneumonia, num pequeno e simples hospital interiorano.
Todavia, parece que no interior o médico trabalha mais. Tem que fazer de tudo um pouco: da criança ao velho, passando pelo parto normal. E não pode errar. Lá quem sabe mais do que o médico é só DEUS. Os casos mais graves e raros eram transferidos de barco para a capital.
Ainda assim, apesar de muito trabalho, eu tinha tempo para um pouco de tudo para mim.
Tudo parecia ir tranquilo e eu seduzido pela beleza e paz do lugar, sonhava realizado com o meu mister. Era um homem respeitado pela comunidade e buscava corresponder.
O meu primeiro salário foi enviado inteirinho para minha esposa e filho.
Já ia lá pelo sexto mês, estando perfeitamente adaptado ao vilarejo e sua modesta vida, quando passei a cuidar de um agricultor na casa dos sessenta anos, homem simples e afável, prosador, de uma conversa agradável, pululada de causos da floresta que incluía "encontro com índios e onça". Era divertido. Eu não sabia se era verdade exagerada ou mentira deslavada.
Tinha o hábito de fumar porronca e beber sua cachacinha.
Sua pele era curtida do sol e a tez profundamente marcada pelo tempo. Parecia ter uns setenta e cinco anos.
Um dia queixou-se de que quase não podia mais pegar na enxada. As suas queixas eram de insuficiência cardíaca ou seja, fraqueza progressiva do coração. Os exames básicos confirmaram a doença. Foi medicado. Sem entender muito bem a gravidade do problema, disse que "já tava na hora mesmo de parar de trabalhar". Ele era provedor de sua família. Isso não ocorreu por necessidade, tampouco eliminou os seus vícios.
Após algum tempo, já imaginava ocorrer, foi internado "para compensar a doença", melhorado, recebeu alta. E, de novo, trinta dias depois, ao apresentar-se com anasarca, termo médico para descrever edema generalizado e certo desconforto respiratório, agora muito preocupado com sua situação, naquela manhã, fui obrigado a reinterná-lo. Tinha que voltar a trabalhar. Expliquei a gravidade do caso aos dois filhos recém saídos da adolescência, igualmente, agricultores que tinham algum estudo.
À tarde, o caso piorara e oxigênio já não lhe bastava. Subitamente, a falta de ar agravara. Não era edema agudo do pulmão. Fez um maciço tromboembolismo pulmonar. Naquela época, não existia tomografia computadorizada do pulmão para confirmar e nem adiantaria.
As chances para sobrevivência mesmo nos grandes centros eram pequenas; ali, eram zero.
Claro que pensei em tranferi-lo e nas melhores condições possíveis para si. Mas, seria como transportar do nada para lugar nenhum, visto que, tudo indicava, a morte em breve venceria.
Rezei em silêncio pela sua alma que logo estaria ao lado de DEUS.
Se houvesse um padre este teria sido chamado para extrema unção.
Avisei à enfermagem q ficaria ali ao seu lado e da mulher e filhos resignados, para mitigar seu sofrimento.
À medida que piorava, pouco a pouco, entre "gaspings", como um peixe agonizando sem ar fora d'água, sua voz foi sumindo e com os olhos secos e envidraçados que nem de boneca, quase sem vida, fechava e abria as pálpebras.
Enquanto pôde, insistia em contar seus causos, para o doloroso sorriso entre lágrimas e profunda consternação de todos os presentes. Era demais para mim, mas mantive a fleuma.
Agarrou a minha mão e disse-me o velho homem já moribundo:
"médico, por favor, não me deixe morrer". Isso me doeu no fundo de minha alma.
Apertei-lhe a mão que já soltara a minha. "Estou aqui", disse eu. Senti as lágrimas do filho sobre meu ombro.
A morte me dizia, finalmente:
"o prazer é todo meu em te conhecer, doutor".
Paulo Rebelo, o médico poeta.
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