A MORTE
A MORTE
As primeiras lembranças de um doente
vêm de minha tenra infância. Talvez tenha sido a minha tristeza seminal.
Francamente, não me lembro de exatamente quantos anos tinha. Dizem que nossa
memória aparece apenas por volta dos cinco anos de vida. Não sei; a minha
parece ter sido mais cedo. Antes a memória lembra uma pequena página em branco,
onde tudo é uma grande e pura nebulosa, mas que certamente alguém escreve sobre
ela coisas com caneta incolor que a marca profunda e suavemente como, quem quer
fazer um registro indelével.
Era no início da noite. Fazia calor.
Próximo de minha casa havia uma senhora já bem idosa, com cabelos ralos e
grisalhos, emagrecida, hoje suponho, pelo câncer que lhe consumia. Era uma
imagem forte, dessas que aparecem em filmes noir. Estava de olhos fechados, não
lembro se ainda respirava.
Em torno se sua casa havia um
burburinho obsequioso com muitos curiosos e desocupados. Lá havia benzedeiras
com rezas e sussurros entre elas, como se soubessem algo que ninguém sabia ou
precisasse saber.
A velha mulher no leito jazia
angelical. Parecia ser uma pessoa estimada ou conhecida.
O meu pai, homem de poucos estudos,
forjado nos braços da vida, me levou para vê-la. Eu nem sabia o porquê. Não era
ela minha avô nem tia. O curioso é que naquela época homens levavam seus filhos
sob os protestos das mães, para ver pessoas doentes, mal sabendo do que
poderiam ter, como se isso fosse um batismo para a vida adulta e,
consequentemente, a consciência para as limitações da vida e a morte que um dia
chegará para todos nós.
Aquela cena jamais me saiu da cabeça
e, de alguma forma, contribuiu para o construto de que um dia eu me tornasse
médico.
Paulo Rebelo, o médico poeta.
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