O FILHO DE DEUS

O FILHO DE DEUS

(desolação)


Por Paulo Rebelo 


A caminho de casa.

São 9 da noite.

Estou cansado...

Chega por hoje.

Dei de mim o que pude no consultório.

Mas, nunca é o bastante,

Eu sei

(É o que me diz a minha consciência para me azucrinar).


Diga-me:

Que sentimento horrível de culpa é esse?

Que mal eu fiz afinal?

O que fiz para que minha consciência me trate como réu?

Por que me parece que fiz tudo errado, que deixei algo pela metade, que preciso refazer ou recomeçar tudo de novo, como seu eu levasse a minha vida com desídia? 

Não posso sequer dormir em paz 

E pior, nem ter o direito de errar...


Faz meia hora que rodo pela cidade vazia pela pandemia*.

É uma cidade fantasma que nem eu me sinto hoje: um fantasma de carne e osso!


Desde a noitinha, 

No consultório, eu já rodava na "reserva de paciência", buscando energia do fundo do tacho.

Cá estou eu rodando com tanque vazio de fé, sendo que o nível da bateria zerou. O rastilho de esperança molhou.

Tenho a impressão que vou parar no meio do caminho...


O consultório já fechou, mas é tão claro; a clientela TODA veio comigo; está aqui dentro no meu carro, todos falando ao mesmo tempo, buscando pela minha atenção, dizendo: "doutor, me salve! Já foi pior; costumavam todos a deitar na minha cama para conversar noite adentro.

Tenho vontade de gritar: "EU, TAMBÉM, ESTOU  DOENTE" (também, sou filho de DEUS).


Então, ensina-me a chorar, eu quero, mas não consigo. Por favor!


Nem almocei.

Apenas tomei um café pingado.  


Uma sensação estranha essa de desolação.


Não é depressão;

É uma subnutrição da alma 

Que foi sendo dia após dia consumida aos poucos, pingando gota à gota e me drenando pelo ralo da pia. 


Parece até pior; 

Não tem cheiro 

E eu respiro 

Um ar que não existe, 

Parecendo que,

De fato, já estou morto 

E andando em círculos e a esmo e revendo em cine loop todos aqueles que se já foram, 

desfilando diante de meus olhos cheios de lágrimas.

Quisera falar com eles; é loucura, pois já não estão mais entre nós. 


Perdão por ter como médico falhado!


Hoje, vi muitas tragédias provocadas pela COVID-19.

Assisti a viúva, cuja filha unica (ambas adoeceram) morreu. 

Atendi o filho que se culpa atrozmente de ter morto a mãe, por ter-lhe infectado. 

O seu coração acelerava tanto e a galope e que dava-lhe a impressão de despencar no desfiladeiro para a morte. Atendi aquele que não consegue dormir e quando mal consegue, desperta subitamente, em pânico, imaginando que está no respirador artificial. Disse-lhe: "shshsh, calma, foi só um pesadelo; calma, meu irmão, tu és um sequelado emocionalmente de guerra. Não levaste um tiro sequer, mas estás mortalmente ferido.

Eu sou o teu remédio!


Nunca tinha prescrito tanto receituário TARJA PRETA. Precrevi até para mim mesmo. Agora eu tenho uma pálida ideia do sofrimento.


Passei a divagar sobre a condição humana.


Assim, deixem-me chorar até desafogar minha alma! 

(Isso vai passar).

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