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Mostrando postagens de agosto, 2020

A IATROGENIA MÉDICA

 A IATROGENIA MÉDICA* Por Paulo Rebelo Assisti uma cena hospitalar que mudou minha vida. Eu era um jovem médico cheio de entusiasmo e com isso já angariava alguma simpatia de pacientes. Um desses pacientes era um homem na casa dos 50 anos, barba sempre por fazer, cabelos ralos e brancos, objetivo e por vezes, confrontador e irônico.  Era um espirituoso. Chegava a ser desconcertante com suas observações inadequadas, mas era um bom homem. Era inteligente e sempre tinha a última palavra ou crítica, algo que médicos detestam num leigo.  É que havia quinze dias que estava internado e segundo ele, ninguém dizia o que ele tinha. Apresentava febre que nunca passava, caroços no pescoço e axilas, perda de peso e suores noturnos "de encharcar a cama". O diagnóstico era câncer do sistema linfático em fase bem avançada. Naquela época, não havia a ressonância nuclear magnética, a imunofenotipagem, o PET SCAN nem o arsenal qimioterápico de hoje. É o que os médicos chamam de "caso clíni...

ACAREAÇÃO

  ACAREAÇÃO  Crônica de Paulo Rebelo Uma das situações mais pitorescas vividas na prática médica é a presença da acompanhante do paciente na consulta, geralmente, provocada pela sua mulher que costuma falar tudo o que está ocorrendo com o companheiro, ao contrário do homem que, com frequência, deixa de informar coisas importantes para a compreensão de seu caso. É notório que a mulher é mais assídua nos consultórios médicos. É um fenômeno mundial. Ela se trata mais, pois tem medo inconsciente de morrer, pois t raz para si enormes responsabilidades. C uida dos filhos e até dos pais na velhice. Ela não pode adoecer; exageradamente, é quase que insubstituível. Quem cuidaria de todos senão ela? Deus acertou quando criou a mulher. Já o homem é o inverso; só vai empurrado ao consultório médico e "na hora da morte". Tem uma autoconfiança excessiva, negligenciando a sua saúde, além do medo de ter alguma doença.  Ele não tem o mesmo zelo por si, dando a impressão que a mulher ...

O PERDÃO

O PERDÃO  Crônica de Paulo Rebelo Acredite, desde muito cedo eu sabia o que queria ser quando crescesse. Nada de policial, jogador de futebol ou astronauta e sim, doutor! E isso parece que tinha uma finalidade; era o meu destino cuidar de meu pai até seus últimos dias. A primeira boa impressão me foi provocada pelo meu pediatra, o doutor Bernardo Santos. Só de ser examinado por ele, eu já parecia ficar melhor. A segunda e melhor impressão ainda ocorreu quando meu pai Evandro, vítima de infarto do miocárdio, foi muito bem tratado pelo seu médico, doutor Franklin Albuquerque. Foi quando aprendi de perto o que é amor ao próximo.  Naquele tempo, há quarenta e tantos anos, o tratamento para a sua condição consistia mais no repouso para acelerar a cicatrização do coração. Não havia angioplastia nem cirurgia de ponte de safena, principalmente, em Belém do Pará. Todavia, sendo a família pobre à época, tudo não passava de devaneios de criança, pois nos faltavam meios.  O fator dec...

O ASSÉDIO

O ASSÉDIO Crônica por Paulo Rebelo  A história que passo a relatar ocorreu há trinta e cinco anos. Fazia a minha pós graduação médica em São Paulo e, na época, isso me deixou com um misto de desapontamento e raiva. Poderia ter acontecido uma tragédia pessoal, se não fosse pela obra do Espírito Santo.  Em parte, porque jovens médicos, acredite, são inocentes tal é a clausura acadêmica. Não tem a mesma vida social das demais profissões, onde certamente não há tanta rigidez estudantil. Sendo assim, eu não era diferente; era ingênuo. À noitinha, recebi um telefonema de uma grande amiga de minha tia, na casa dos quarenta anos (o dobro da minha), para que eu fosse atendê-la na sua casa num bairro distante, pois dizia estar com "pressão alta". Estranhei o convite, mas não pensei duas vezes; precisava de dinheiro, além do que alimentava minha autoestima profissional. No seu belo sobrado, lá estava um casal amigo seu dando-lhe apoio. Inicialmente, não percebi nada de errado até que já...

A ESTRADA

  A ESTRADA Por   Paulo Rebelo A estrada Que é minha, Às vezes, É colorida, Tão clara, Outras vezes, Tão escura E cinza. Ora é uma reta Ora perigosa curva, Ora estreita Ora larga. Ora pavimentada Ora crua. Imaginei que a estrada Estivesse livre, Limpa E segura Mas, um dia, Tornou-se Íngreme Incerta, Acidentada E suja. Tinha a impressão Que era longa A perder de vista Mas, agora, Depois de tanto andar, Já não tenho mais tanta certeza; Parece curta. Acreditava Que sabia Para onde ia, Todavia me perdi, Me feri E para sobreviver Tive que cortar caminhos Como garantia. A minha estrada Tem muitos desvios; Nunca foi bem sinalizada, Muitas vezes, Termina num abismo, Num beco sem saída, Numa encruzilhada.  Ainda assim, É minha solitária  Caminhada. Paulo Rebelo, o médico poeta.

A DOR

A DOR Por Paulo Rebelo Ah! A dor que sinto  é minha. Tão solitária, Tão visivelmente Escondida. Quisera passar  Adiante, Ser Dividida, Cedida Descartada, Perdida. Todavia Não pode ser vendida Nem alugada. Não pode ser vivida Nem sentida Por ninguém. Não é egoísmo; É só minha. A minha dor  Não tem nenhum Valor para outrem, Exceto para mim. Apenas eu sei  Seu preço. Dentro de mim Está seu endereço. Ela é a necessidade Da expressão  De minha alma Por uma perda, Por ausências Com toda intensidade, Estranha beleza, São carências. É a dor  De um momento, De toda uma Existência, Afixada em mim Como um eterno Encantamento. Paulo Rebelo, o médico poeta

O VÍCIO (mutilação)

O VÍCIO (mutilação) Crônica por Paulo Rebelo Ainda que tente, nunca entendi perfeitamente o ser humano. Talvez, porque sejamos bilhões, mal conhecendo quem está próximo de nós com todas as suas peculiaridades, quiçá gente afastada ou desconhecida. Agora como médico, tento entender o outro, até mesmo para o bem dele. De certo modo, se consegue, porque fragilizado, o paciente fala tudo. Bem, nem tudo. Às vezes, nada. Atendi um homem estrangeiro na casa de uns 60 anos, diabético e fumante; três carteiras de cigarro por dia, segundo ele. Apresentou trombose venosa profunda na perna, quando há formação de um grande coágulo na panturrilha. Internou. Tratou e recebeu alta. Depois de um ano, superou o aquele problema imediato. Com o tempo, complicou com úlcera do pé afetado pela trombose. Depois de muito sofrer, fez amputação do pé. Meses depois, da perna abaixo do joelho. O interessante, é que continuava fumante. Imagine que a fissura pelo cigarro era tamanha que ele chegava a se ausentar do ...

A SINA (versão reduzida)

 A SINA (versão reduzida) Por   Paulo Rebelo   Assim vou me acabando. O tempo desfilando Diante de meus olhos, Indiferente, Insensível Ao sofrimento Humano.   Quem me dera Pudesse pará-lo. Mas, não há interruptor. Do tempo, Nunca fui senhor.   É que o tempo É inconsequente Levando tudo consigo, A dor, O amor. Inclemente Parece ditador.   Assim, Irrefreável, Que nem águas À jusante do rio, Aos poucos, Escoa minha existência Por inteiro Para um dia, Quem sabe Como piedade final, Num jazigo Alimentar as frágeis flores De meu modesto canteiro.   Paulo Rebelo, o médico de corpo e de almas

A CURA

A CURA Atuando Há muitos anos, Como médico, Lido o tempo todo com pessoas Numa grande encruzilhada Da vida Ou num beco sem saída Diante da incurabilidade De suas doenças Ou fatalidade Da morte próxima. Antes do aparecimento Da bioética E da ortotanásia, Eu já praticava a empatia A caridade, Era uma época Não muito distante, Quando a medicina Passava a ser Apenas beneficente Nos casos De fora de possibilidade Terapêutica, Porém de fé Poderosa. A pergunta Que se fazem Nesse momento É essa: "O fazer com o tempo incerto Que mal me resta?", E daí, Sobrevém um vazio de silêncio, Sepulcral, Repleto de sentimentos Agonizantes, Quase sem vida, Nos seus últimos estertores. Assim, Às vezes, Esse indivíduo assemelha-se À uma criança sozinha E com medo num quarto escuro. Acalmaria-se Se escutasse o pai Dizer alto do lado De fora do quarto: "Tenha calma, meu filho, Teu pai está aqui para te proteger". Acredite, Essa é analogia q...

A SINA

  A SINA (Ou o canteiro de flores) Por Paulo Rebelo Aos poucos, Assim vou me acabando. O tempo desfilando Diante de meus olhos, Desafiando-me, Indiferente, Insensível Ao sofrimento Humano. Indisfarçável, Segue cursando Seu caminho De becos sem saídas E encruzilhadas Numa longa E tortuosa estrada. Às vezes, Ora sóbrio Ora insano, Empurrando-me Adiante, Numa constante. Quisera pausá-lo... Mas, não há interruptor. Nem bloqueios Não tenho o comando. Nem os arreios. Eu, Do tempo, Nunca fui senhor. É que o tempo É um inconsequente Que leva tudo consigo, A dor, O amor. Inclemente Parece ditador. O tempo Evapora a vida; É uma sina Que martiriza. Assim, Irrefreável, Que nem águas à jusante do rio, Lentamente, Escoa minha existência Por inteiro Para um dia Num jazigo, Quem sabe, Como piedade final, Alimentar as frágeis flores De meu modesto canteiro. Paulo Rebelo, o médico poeta.

SENTIDOS

  SENTIDOS Por  Paulo Rebelo Tenho a boca, Mas não tenho a palavra. Tenho olhos, Não tenho o olhar. Tenho ouvidos, Mas não tenho o escutar. Tenho a língua, não tenho o gosto. Tenho a pele Mas não tenho o tato. Como tudo isso, Sou nada. Tenho espelho, Mas não tenho rosto E, sim, máscara. Ah! Mas, quando é o inverso… Sou tudo. Paulo Rebelo, o médico poeta.