O JUIZ DE PAZ

O JUIZ DE PAZ

Por Paulo Rebelo


Às vezes, o indivíduo cava a sua própria sepultura. Já vi isso inúmeras vezes na prática do consultório.


Alguns anos atrás, ocorreu-me uma consulta médica inusitada, entre muitas que faço diariamente.


Veio ao meu consultório um casal, cujo cônjuge tinha tido um infarto do miocárdio há vários meses. Quanto a isso, dentro do esperado, estava se recuperando bem. A esposa ficou na sala de espera. Estranhei sua atitude, pois nesses casos, a companheira está sempre presente na consulta.


Durante o atendimento, vim a saber depois que a união dos dois estava profundamente abalada, para não dizer acabada.


O complicado caso clínico inicia-se num casamento de trinta anos que desmoronou e recolhendo os cacos, o homem e a ex-mulher, incrivelmente, tentavam reatar, pois reavaliado o enorme estrago, pesados os prós e contras, às duras penas, engolindo todas as dores do mundo, os dois tentavam recomeçar a vida agora a quatro.


Eu não os conhecia e me reservava à condição de mero observador, sem interferir muito na história, exceto buscar conduzir a anamnese adequadamente, isto é a sua história sem que ele se perdesse), porém mais preocupado com a condição clínica do homem.


Angustiado e tristonho, iniciou sua consulta dizendo que não queria apenas falar de sua doença ; queria falar sobre sua condição matrimonial que já não existia mais, mas que ele acreditava sim, que poderia dar a volta por cima para, então, poder se curar completamente. Era como se ele quisesse recomeçar tudo de zero, algo impossível, mas deixei que acreditasse. Assim no início eu o permiti falar livremente. 


Acredito ainda hoje que seja importante o vínculo de confiança na relação médico paciente, portanto não é de estranhar que o consultório  médico seja um "confessionário". Infelizmente, hoje, é cada vez menos.


O interessante é que no passado existia o verdadeiro conceito de "médico da família", que não era apenas do casal, mas da família inteira. 


Aquele médico que eu, como paciente vi com os meus próprios olhos e tive na minha casa quando criança era tudo isso: do clínico geral até o pediatra, passando por geriatra e até "conselheiro familiar", tratando da criança ao avô da casa. Havia familiaridade e cumplicidade.


Isso é bem diferente do atual "médico da família", atuante nas periferias das grandes cidades, de concepção socialista, que juntamente com uma equipe de saúde multidisciplinar, sem nenhuma privacidade, cuida de uma e de várias outras, uma cópia mal feita da original.


A necessidade daquele meu paciente falar tudo era verdadeira e hoje, para a maioria ainda é, mas está mudada. Naquela época, o médico parecia estar mais disposto a escutar o paciente, também. Havia as confidências nas conversas reservadas e, principalmente, o pudor, diferentemente, de hoje, quando fala-se de sua vida, inclusive íntima, abertamente para "seguidores", como se isso fosse importante.


Acontece que a vida matrimonial do casal que era boa até quase dois anos atrás, como passo a relatar a seguir, descarrilou. Ele agricultor e piscicultor e ela professora. Sua vida era tão boa que resolvera estragar; arranjou uma mulher "70%" mais jovem que ele. Tudo não passaria de uma recaída juvenil em meio à maturidade, com o devido perdão de sua esposa, se a bela jovem, dele não tivesse engravidado.


Como se não bastasse, nesse interregno, ele teve um infarto e teve que colocar dois stents coronarianos. Foi um duro golpe na sua auto estima e auto confiança daquele rude caboclo amazônida que vencera na vida sem sequer completar os estudos.


Assim, para piorar, o motivo principal da vinda do homem ao meu consultório foi o "princípio de derrame"; com tanta pressão familiar sobre si, além do infarto pregresso, acabou tendo um discreto AVC  isquemico, porém por pressão alta não controlada, em parte, em decorrência da ansiedade crônica e tensão dos últimos tempos.


Arrependido, ele queria voltar p casa, mas a ex-mulher relutava em aceitá-lo de volta; perdoar, sim, mas voltar ao casamento, jamais; ela não queria ser a outra ou mais uma, sabe-se lá o que mesmo. Às vezes, rolava um "feedback".


A gota d'água, a causa de tanto infortúnio pessoal e revolta familiar  ocorreu quando ele teria decidido a sair de casa para assumir a nova família, sendo que saíra para não mais voltar e daí, simplesmente, depois de dois anos sofrendo, a mulher definitivamente buscou a separação.


Depois de algum tempo, ela mesma tentou refazer a sua vida sentimental com outro, um antigo namorado, para desespero do ex-marido.


Diante das consequências de sua enfermidade, a jovem companheira, inexperiente e inábil nessa situação (que somente uma mulher madura poderia assumir), resolveu "passar a bola", permitindo que o agora esposo fosse cuidado pela ex-mulher que, curiosamente, passara a ser sua mulher de novo, ainda que temporariamente, algo que não era de seu agrado, mas que fora posta nessa constrangedora situação de "ex-esposa até que a morte os separe", para o escárnio de parentes e familiares do "casal sem vergonha".


Por um momento, quase perco o controle da situação; o meu consultório mais se parecia como uma delegacia de polícia com "ACAREAÇÃO" e troca de acusação entre os dois, remoendo o passado com direito à lavagem de roupa suja. Após adverti-los, se calaram.


Eu me perguntava a todo instante, enquanto o atenda:


"onde eu entro nessa história?"


Eis o casal que estava à minha frente, buscando uma solução não só médica, mas matrimonial.


Após resolver a questão médica, assegurando-lhe que do coração o homem estava bem e com o devido tratamento neurológico e fisioterápico do AVC, ele ficaria plenamente recuperado e logo, acreditando que, a despeito da tragédia familiar ainda houvesse uma chama de amor entre eles, eu os convidei a voltar à  vida matrimonial. 

"Passem uma régua e vivam a partir da agora", disse-lhes. 


O homem brilhou os olhos; a mulher se surpreendeu pela "intromissão" e pela primeira vez, sorriu. Não disseram nem sim nem não.


Eu estava otimista.


Eu estava de férias no RIO, quando senti um tapinha afetuoso e meio forte nas costas.


"Ei, doutor Paulo! Lembra da gente! 


Abriram um largo sorriso. Dez anos depois, estavam mais velhos, mas me pareceram mais bonitos e felizes.

O casal havia voltado!


E essa menina linda aí? perguntei-lhes. A mulher disse: "agora a filha dele, doutor, ela é minha filha do coração. Sempre quis ter uma menina. Olha como DEUS opera de maneira estranha na vida da gente. Está conosco desde os 2 anos de idade, depois que ele se separou da "outra".


"Meu doutor, muito obrigado! O senhor foi muito mais que um médico!" Disse o homem:


"O senhor foi um JUIZ DE PAZ!"


😁😁😁


Paulo Rebelo, o médico dublê de Juiz de Paz.

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