PASSES
DANDO PASSES
Por Paulo Rebelo
Acontece cada coisa curiosa no consultório. Algumas ficam na minha memória pela graça e leveza.
Atendi há muito anos e durante quase duas décadas, uma negra, bonita, obesa, agradável, na casa dos 70 anos, hipertensa e diabética.
Era uma pessoa disciplinada, mas chamava atenção o fato da pressão não controlar adequadamente, ainda que tomasse sua medicação e nada de extraordinário ocorresse em sua vida. Há muito evitava o sal, não fumava e não fazia uso de bebida alcoólica, exceto uma "latinha de cerveja", às vezes.
Ultimamente, era sempre assim: geralmente, nos fins de semana, várias idas ao pronto atendimento quando, então, tomava injeções para baixar a pressão e poucos dias depois, lá estava ela novamente.
"A senhora não está escondendo nada de mim? Eu não sei mais o que fazer", brinquei. "A medicação me parece correta e a senhora só piora depois do sábado e domingo? O que é que a senhora faz? É festa? Remédio para pressão é bom para pressão e não para tensão ou para confusão", disse-lhe. "Isso deve ser algum encosto". E, curiosamente, lembrei de uma canção.
"A senhora conhece esse ponto de candomblé? - Coragem, meus marinheiros, coragem pra navegar, ela se chama Mariana*, ela é a Rainha do Mar".🎶
A mulher, surpresa, arregalou os olhos como se eu tivesse adivinhado algum segredo seu.
Mãe e filha se entreolharam. "Êpa, de onde o senhor conhece isso, doutor?" A mulher falou.
"Mãe, eu vou contar pro doutor", disse a filha.
A mulher fez cara feia, com ar de reprovação.
"Doutor, ela tá escondendo do senhor; ela bebe, sim, fuma e muuito!"
"Não acredito!" Disse mais como ar de provocação.
"Mentira, doutor, eu não!" Disse ela. "São os caboclos, ora! Eles é que me obrigam na hora que eu, "incorporada", estou dando passes! Pedem que eu satisfaça eles e não é pouco, não,"
Eu não pude deixar de rir.
O fato é que por conta da sua "profissão", ela era "obrigada" ao tabagismo e etilismo; durante anos, ela me escondeu que tinha um famoso Terreiro de Umbanda; ela era Mãe-de-Santo!
Paulo Rebelo, o médico poeta.
*Mariana é o apelido de Iemanjá, a mãe de todos os santos do candomblé.
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