RUBEN BERMEGUY
Eu lerei ainda!
UM OU OUTRO ABISMO
Eu preciso escrever um livro.
Um livro que me sirva de abismo.
Abismo que não tema a distância entre a palma dos pés e o tempo que resta. O meu tempo e o tempo dele. Um abismo que seja pacífico e que não tenha pressa para saltar, mas que nunca deixe de preservar o precipício.
Um abismo que exista em nós. Somos, afinal – eu e o abismo – imprescindíveis um ao outro. Entre nós dois, ninguém, salvo a saudade. Sem saudade não existe abismo e sem abismo eu também não existo.
Embora sobrepostos, nossa convivência, por excessiva talvez, beira a beira sinuosa dos desavisos e, para evitar uma contusão maior, é preciso elaborar o voo e aquilatar o tempo de queda.
Para tanto, lançamos sobre nós um relógio feito exatamente para desmedir as horas. Um relógio que pulse em brasa todas as tempestades. Inseguros o suficiente, remamos umidamente acolá.
Só depois disso, movemo-nos no ar e, reconciliando com nossa desordenada saudade, assumimos que não precisamos fingir a linhagem de nossas dores. Ela – a dor – é única e, além de universal, mora em uma vila muito pequenina onde é possível recapitular o livro que preciso escrever, sem ruína, sem catástrofe, apenas ordenhando lonjuras.
Um quase sentimento entre-hostil vagueia e algumas gotas de ar se aninham no chão pisado de futuro. Rivalidade inútil, se diga. Afinal, somos só eu e o abismo. Um a depender do outro. Salvo a saudade.
Arredar defronte de nós a saudade, mesmo que próprio ao voo - meu voo e voo do abismo – é quase que ouvir confissões e não perdoar os pecados. Ou, amar sem os cuidados da insensatez.
O conteúdo histórico da saudade veste-se de um tempo que acasala todos os sacrifícios e, acreditem, já vai inteirar uma vida que não passa. Ao largo ou não.
Mas, em verdade, a saudade nem sempre foi assim. Quando éramos criança – eu e o abismo – nos divertíamos com ela. Às vezes a separávamos em gomos e em cada sílaba do gomo escrevíamos textos incríveis, textos de vez e textos maduros. Acudíamos todas as alegrias. Molecávamos.
Embora a saudade nunca se zangue, e nem teria razão pra lembrar disso, depreca palmadas. É que crescem os gomos e com eles crescem as sílabas, agora encarnadas de tempo, muito tempo de saudade.
E é por isso que eu preciso escrever um livro. Um livro que me sirva de abismo. Abismo que não tema a distância entre a palma dos pés e o tempo que resta.
O meu tempo e o tempo dele.
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