A CEGONHA

A CEGONHA

Um dia ela chegou recém-nascida de surpresa em suas vidas.
Havia sido abandonada duas vezes. 
Estava internada pelo SUS com diarréia por rota vírus e com grave desnutrição - o temível  Marasmo-Kwashiokor.

Sozinha, apenas pelos cuidados do hospital, lutava entre a vida e a morte.

Foi assim que as vidas dela e do médico se cruzaram.

Ele passou a se afeiçoar  por ela. 
Já havia comentado sobre a condição difícil da criança com sua mulher que era pediatra. 

No almoço, arriscou: "vamos adotá-la?", perguntou-lhe. 
Para sua alegria, ela aceitou! 

Passaram a levar o enxoval da bebê, inclusive, leite artificialmente enriquecido de proteínas e vitaminas.

Depois de trinta dias, 
a criança ia bem, recebeu alta melhorada, 
mas ainda inspirando cuidados familiares redobrados, 
quando duas assistentes sociais do governo, 
rigorosamente, cumprindo a lei, levavam a RN para o abrigo. Toparam-se no corredor do hospital.
Prontamente, 
ela as reconheceu;
elas não. 

Fez um apelo para que a criança ficasse com o casal.
Ao perceber a indiferença das duas, ameaçou revelar à sua esposa quem realmente eram elas: insensíveis e "secas". Sim, elas mesmas com seus filhos pequenos, clientes de sua esposa. Elas que inúmeras vezes apelaram para que fossem atendidas por ela fora de hora, pedindo por socorro.
Logo, receosas que o médico cumprisse seu intento, voltaram atrás.

Ligaram para o juiz de plantão que concedeu a retroatividade ao casal, o direito da "Adoção Natalina", um período curto para adaptação para possível adoção, mas obrigatoriamente a criança iria para o abrigo, legalmente, terminada essa fase.

Deveria ter apresentado a criança à Justiça no dia primeiro de janeiro, mas num gesto ousado, o casal não o fez.

"Caçado" pelas assistentes sociais já sensibilizadas pelo interesse do casal pela adoção, providenciaram "com urgência" um audiência com o juiz substituto de plantão. 

Após ter sido advertida pelo juiz, a esposa do médico, apresentou-lhe um breve relato da evidente melhora da saúde da criança; havia ganho setecentos gramas, as lesões da pele secaram, o cabelo ganhou brilho e o melhor, agora, em vez do triste "Cri du Chat"*, já sorria com brilho nos olhos quando antes apenas chorava, grunia e gemia como um animal ferido.
E perguntou a ele: "senhor juiz, ora quem vai querer uma criança doentia, negra com traços indígenas? E colocá-la num abrigo sem nenhum afeto maternal? Vai contunuar sofrendo".

O juiz, um pouco surpreso com a firmeza da mulher, pensativo, franziu o cenho, sorriu levemente e olhando-a sobre seus óculos, convencido de que era  o melhor a fazer, deu-lhe a guarda provisória que após alguns meses, acabou se tornando a adoção definitiva.

A menina crescia e se desenvolvia bem, completamente entrosada no seu novo lar. Depois de algum tempo, sem mais nem menos, curiosa, volta e meia, queria saber algo inevitável: por que só ela era "preta" na casa, enquanto todos seus irmãos eram brancos. Bem, como explicar que ela não era filha biológica do casal?

Então, a mãe que era espirituosa e engenhosa criou a seguinte história que a menina incorporou como sendo a sua para sempre:

 "a cegonha que estava te trazendo pra mim como filha se perdeu pelo meio do caminho por volta do meio dia e foi parar lá no meio do mundo, no Marco Zero do Equador. Então, resultado: coitada, tu tomaste tanto sol até não querer mais que ficaste preta! 

Os olhinhos da menininha cresceram de espanto e mais curiosidade ainda.
"E a cegonha, mamãe?", perguntou a menina. 

"Ah, bem, a pobre da cegonha tava tão cansada e assustada de "zolhão", seca e estorricada, morta de sede com a língua de fora, coitada que só dizia assim: "perdão, gente, eu não tive culpa!" 

Quando chegou aqui tivemos que dar muita água e comida para ela, tadinha. No dia seguinte, fomos lhe agradecer por ela ter trazida para mim; quando vimos, ué, ela já tinha ido embora!

A menininha que prestará muita atenção, já não pensava nem mais nela própria, mas na cegonha e toda vez, quando a seu pedido escutava a mesma história, curiosamente, só perguntava pela tal da cegonha e começa a rir com os olhos brilhando de emoção só de imaginar a pobre de estar "seca e estorricada e com zolhão" e dizendo "perdão".

Assim, por fim e para sempre acabou por nem mais lembrar de sua própria cor da pele e condição, mas como a cegonha se sacrificou por ela.

"Mamãe, tu "perdou" ela?" Perguntou a menininha, curiosamente, lá no fundo, já sabendo de sua resposta...

Paulo Rebelo, o escrevente do tempo.

*Choro do gato

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